domingo, 23 de dezembro de 2012

O CRAQUE E A MEMÓRIA DO CHUMBO

 Conta-se que certa vez a seleção chilena foi recebida por Pinochet.
Entre os jogadores estava Carlos Caszely, El Rojo de La Roja.
Pinochet aproximou-se dele e aconteceu o seguinte diálogo. 
Pinochet ¿Se va? 
Caszely - Así es, ya está bien.
Pinochet -  Usted siempre con su corbata roja. Nunca se separa de ella. (Você sempre com sua gravata vermelha. Nunca se separa dela)
Caszely - Así es Presidente, la llevo al lado del corazón. (Assim é, Presidente, eu a levo ao lado do coração)
Pinochet - Así le cortaría esa corbata roja (haciendo con los dedos el gesto de tener unas tijeras). (Assim lhe cortaria esta gravata vermelha (fazendo com os dedos o gesto de cortar com uma tesoura) 

Todavia, o comportamento mais marcante de Carlos Caszely foi durante uma partida de futebol no estádio Nacional de Santiago do Chile. 
Logo depois do golpe que assassinou o presidente Allende, o estádio fora fechado para o futebol e utilizado pelos militares como campo de concentração.
Milhares de chilenos ficaram presos lá. 
Muitos morreram.
Havia um lugar no estádio, todos sabiam, atrás de um dos gols, onde ficaram os presos políticos.
Pois bem, quando o estádio foi reaberto, num dos primeiros jogos, Carlos Caszely estava em campo.
Não sei se pela seleção ou se pelo Colo-Colo.
Marcou um gol.
Ao invés de correr para os seus companheiros ou para a sua torcida, correu para o lugar vazio onde ficavam os presos políticos e comemorou com eles ou com a ausência deles.
Esta é uma das imagens mais espetaculares do futebol em todos os tempos.
Um jogador saudando arquibancadas vazias onde um dia houveram pessoas que morreram sob a ditadura. 
A história é esta mesmo, ou invento?
Aconteceu com Carlos Caszely, ou com outro?
Foi mesmo naquela época ou em outra?  
Hoje, com o estádio Nacional reformado, um largo espaço se destaca. 
Cinzento, dá impressão de sujo.
Neste lugar, intocado pela reforma, ficavam presos os opositores de Pinochet. 


Pelo Estádio Nacional passaram certa de 40.000 prisioneiros, de onde foram mandados, a maioria, para o Campo de Prisioneiros de Chacabuco, a 110 km de Antofagasta. Muitos perderam a vida.

Vi algumas partes do excelente documentário MEMÓRIAS DO CHUMBO do grande Lúcio de Castro, produzido pela ESPN.
A série vale ser comprada e vista várias vezes.
Um documento punjente sobre o futebol ao tempo das ditaduras latino americanas.
As ditaduras que estiveram entrelaçadas entre Brasil, Chile, Urugaui, Argentina.
Militares a soldo de interesses políticos e financeiros conduzindo massacres e assassinatos.
O belo documentário me faz recordar aqueles anos em que, no Brasil e na América do Sul, o futebol e a religião estiveram a serviços dos ditadores. 
Dentre todos os jogadores e dirigentes desta época, poucos se destacaram por suas posições contrárias à ditadura. 
No Brasil, apenas Afonsinho, meia do Botafogo no final dos anos 60 e início dos anos 1970, depois Reinaldo do Atlético que comemorava os gols erguendo o punho fechado como os manifestantes da esquerda, o Sócrates que reeditou o gesto de Reinaldo nos anos 1980 e o treinador e jornalista João Saldanha que era ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). 
Um que realmente se destacou foi meia atacante chileno Carlos Caszely. 
De família humilde, nascido num bairro pobre, começou no Colo-Colo.
Era um jovem da esquerda que apoiava abertamente a Unidade Popular, coalizão de partidos que elegeu Salvador Allende como presidente do país em 1970.
Caszely fez a sua estréia oficial no Estádio Nacional em 30 de julho de 1967
A juventude chilena logo se identificou com ele por ser um tipo autêntico, sem "papas na língua", além de ser um jogador estraordinário, principalmente em espaços reduzidos (o que lhe valeu a alcunha de El Rey del Metro Cuadrado). 
A velocidade também era sua característica. 
No Chile é chamado até hoje de El Chino, El Rey del Metro Cuadrado, El Gerente. 
É o mais querido dentre todos os jogadores chilenos.
Em 1973 os militares de Pinochet derrubaram e mataram o presidente Allende.
Caszely foi pra a oposição ao ditador. 
Com toda a sua fama e tendo muito a perder, em plena ditadura Pinochet, Carlos Caszely recusou-se a cumprimentá-lo. Foi o único jogador que não cumprimentou o ditador. 
A imprensa chilena da época, toda ela favorável à ditadura - tal qual no Brasil - noticiou que Caszely deixou Pinocht com a mão estendida.
O jogador nega: "Somente evitei o cumprimento."
Caszly era chamado do "El rojo de La Roja".
A imprensa o acusava de comunista. 
La Roja é o apelido da seleção chilena.
Enquanto Dom Elias Figueiroa, incensado zagueiro que jogou pelo Internacional de Porto Alegre, alinhava-se garbosamente ao lado de Pinochet, El Chino, El Gerente, El Rey del Metro Cuadrado como Carlos Caszely era chamado por sua habilidade de driblador e goleador, ficou decididamente contra. 
Pelé se deixava fotografar alegremente ao lado do ditador assassino Garrastazu Médici.
Dos campeões mundiais de 1970, nenhum abriu o bico.
Ou fechou a cara para a ditadura.
Carlos Caszely, não.  

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