sexta-feira, 18 de março de 2011

A REGRA

A REGRA
Ary da Turica, assim chamado por causa da moça com quem namorava por mais de cinco anos e o radiotécnico Gonçalinho eram doidos por futebol. Mais ainda pelo time da cidade, o Carijó. Dedicados, chegavam aos treinos antes que todos, mas eram péssimos jogadores.
Nos jogos nunca eram relacionados nem para o banco de reservas.
Nos treinos coletivos ficam sentados à beira do campo, com chuteiras e meiões, torcendo para que alguém faltasse e eles pudessem ao menos treinar.
O técnico, um ex-tenente do exército, evitava passar perto deles para fugir daqueles olhos compridos, pidões.
Fico com pena”, dizia ao presidente do time “mas eles são ruins demais”.
Dia de jogo, transformavam-se em maqueiros. Conduziam para fora do gramado os atletas machucados. Num histórico confronto com o Esportivo de Congonhas, levaram para fora do campo um atacante adversário, passaram pelo portão do alambrado, tiraram as chuteiras do coitado e as jogaram no mato além de ameaçá-lo caso ele voltasse.  Houve brigas e protestos, ameaças de anulação do jogo, mas o Carijó prevaleceu.
No ano de 1962, campeonato regional em andamento, o time deu de perder jogadores por contusão, suspensão e outras pragas. Nonô quebrou o tornozelo, Carlinhos estourou o menisco, Jales foi preso por tentativa de assassinato, Julinho arranjou emprego em Vila Velha e nunca mais apareceu na cidade. Tito e Celso foram suspensos. Geraldinho teve um acidente na estrada de ferro com perfurações nas tripas e só voltou um ano depois. Paulinho, revelação do time, foi pego e levado à força para servir o exército, ele que conseguira escapulir do serviço militar quando completara 18 anos, escondendo-se numa fazenda do Bonfim.
Elenco desfalcado, o tenente treinador foi obrigado a colocar Gonçalinho e Ary no banco de reservas.
Orgulhoso, Ary prometeu casamento a Turica e Gonçalinho trabalhou com mais afinco no reparo de quanta bugiganga lhe mandavam.
Nunca entravam nos jogos, mas era de se ver o orgulho com se sentavam no banco de reservas vestidos com a camisa preta e branca do galo do Paraopeba.

Na semifinal o beque central Hélio machucou-se, não tinha ninguém no banco e Gonçalinho entrou. Mas não entrou na zaga, entrou na ponta esquerda. O ponta esquerda foi jogar de centeralfo (center half) –  nome antigo do atual primeiro volante – e este foi pra zaga.
Ponho Gonçalinho de beque e perdemos o jogo”, justificou-se o treinador para tantas mudanças.
Gonçalinho, na ponta esquerda, partiu veloz pra cima do alfe direito do Moedense e arrebentou com ele. O lateral não voltou a campo deixando o adversário com um a menos e o Carijó venceu. Foi à final.
Gonçalinho, o herói do jogo, não dava conta de segurar contentamento e ria de tudo, ou chorava.
Fui a arma secreta do treinador”, berrou, e deu um abraço emocionado no velho tenente que custou se ver livre dele.
Na final, Gonçalinho continuou na ponta esquerda porque o zagueiro titular, o Hélio, seguiu contundido, o joelho virou-se numa bola.  
Seria um jogo duríssimo contra o Casa de Pedra aquela final.
Zero a zero, zero a zero, zero a zero, jogo chegando ao fim, o centro avante Zezé quebrou o braço e Ary entrou no lugar dele.
Estava formada a ala esquerda mais desprezada da história do Carijó, Ary e Gonçalinho.
O goleiro do Casa de Pedra, Lalá, era o melhor da região, já jogara no profissional do Cruzeiro.
Agora que não marcamos mesmo”, lamentou-se o tenente treinador, “mas fazer o quê? Não tenho outro”.
O Casa de Pedra perdeu um ataque no finalzinho do jogo, o Carijó avançou rápido, Gonçalinho recebeu na esquerda e cruzou como pode para o meio da área. Ary desembestou pelo meio atrás da bola e o zagueiro adversário, apavorado, passou-lhe uma rasteira.
Pênalti.
Mário Rezende, ponta de lança famoso na região pegou a bola para bater e Ary botou peito. “Quem sofreu o pênalti que bate”.
Essa era a regra. O tenente treinador ficou maluco. Entrou em campo para tentar convencer Ary a abrir mão do seu direito e deixar Mário Rezende fazer a cobrança.
“É o Lalá, Ary, o homem pega até pensamento, deixa o Mário bater”.
Não teve êxito. Regras são regras e ele era tenente reformado. Voltou para a beira do campo caminhando com umas pernas que não eram dele, bambas, temendo pelo pior.
A torcida protestou quando viu que Ary se preparava para a cobrança. Depois entendeu, era a regra. Torcedores taparam os olhos. Outros rezavam. Um silêncio de pedra em roda do campo foi interrompido de repente. Era Turica gritando extasiada: “Ary, Ary, Ary”.
Ary tomou distância, Turica calou-se, o juiz da federação amadora autorizou, ele caminhou sereno pra bola e tocou no canto esquerdo quando Lalá, o famoso goleiro do Casa de Pedra, pulou para a direita.
Gol do título.
Gol do Ary maqueiro.
Horas depois do jogo, no meio das festividades, o treinador perguntou: “E se você errasse o pênalti?
Errava não. Eu tenho é muito amor por esse time”.

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